(2008-2010)
Desenvolvi esta instalação fotográfica entre os anos de 2008 e 2010, quando foi exibida no então Museu da Gravura de Curitiba (hoje Museu da Fotografia), como resultado do programa Bolsa Produção da Fundação Cultural de Curitiba. Trata-se da tentativa de ordenar de 01 a 100 as minhas “importâncias” em um painel infográfico de 10m de largura x 1m de altura, que por fim resultou em uma composição de 516 espaços e 484 fotografias.

A proposta para o projeto surgiu da convergência de diversos fatores, mas sobretudo do meu primeiro encontro físico com a morte, que talvez para mim talvez tenha vindo relativamente cedo. Eu tinha então vinte e seis anos e nunca tinha visto um cadáver. Talvez por isso, até então imaginara a morte como uma alegoria de passagem, algo ritualístico e até transcendental. De repente abro uma porta e me vejo diante de um caixão com a minha madrinha morta e todas as mulheres da minha família ao seu redor. Como um clarão, tive uma visão instantânea dessa mesma cena se repetindo com cada uma de nós. Isso me marcou profundamente.
Pouco tempo depois, assisti ao vídeo People in Order (2006), da artista Lenka Clayton, em que pessoas entre 1 e 100 anos dizem sua idade ao tocar um tambor. Na última cena, uma senhora de 100 anos afirma, com um ar de dúvida: “One hundred… Is that it?” (Cem anos, é isso mesmo?) Com sorte, viveremos até os 100 anos? O número 100 se tornou um dado, mas também uma sentença: o ponto do abismo no fim do horizonte.

Essa obsessão numérica se encontrou, pouco mais adiante, com um livro: A segunda infância, de Manoel de Barros (2006) – uma edição de folhas soltas, numeradas e guardadas numa caixa, como um pequeno continente ao qual se pode agregar ou subtrair memórias. Um dos poemas do livro dizia das importâncias:
Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eifel. (Veja que só um dente de macaco!) Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Sem precisar medir o ânus da formiga. Que o canto das águas e das rãs nas pedras é mais importante para os músicos do que os ruídos dos motores da Fórmula 1. Há um desagero em mim de aceitar essas medidas. Porém não sei se isso é um defeito do olho ou da razão. Se é defeito da alma ou do corpo. Se fizerem algum exame mental em mim por tais julgamentos, vão encontrar que eu gosto mais de conversar sobre restos de comida com as moscas do que com homens doutos (Barros, 2006, p. IX).

O poema me fez pensar que essa relatividade das importâncias podia ser também um dado mensurável e, portanto, observável. Uma vez tornado visível através de uma estrutura numérica, esse dado poderia então ser comparado, ou mesmo substituído. Somados o poema, a estrutura infográfica e a minha recente obsessão com a morte, o resultado enfim foi o projeto: desenvolver um grande painel de importâncias composto de imagens ordenadas em valores numéricos de 1 a 100. Ao reler o projeto em voz alta, o som do número 100 me remeteu imediatamente à palavra “sem”: 100 importâncias = sem importâncias. Como no livro de folhas soltas de Manoel de Barros, eu teria um painel-continente de cheios e vazios. A equivalência dessas duas forças deveria ser um ponto de equilíbrio: o esquecimento deveria ter o mesmo peso das lembranças, como um dado concreto, uma massa palpável, um oco tão ou mais importante do que as fotografias exibidas, tal qual o silêncio compõe os contornos das sinfonias.
Assim como projetei minha própria imagem sobre a daquela mulher de 100 anos de idade que tocava o tambor, acreditava que, ao classificar minhas importâncias, quaisquer imagens que eu elegesse se tornariam invisíveis, substituíveis pelas imagens internas dos receptores. Assim como o editor de Cinema Walter Murch (2004), em seu livro Num piscar de olhos, descreve o filme perfeito como “aquele que se desenrola como que por trás dos olhos, como se os seus olhos o projetassem e você estivesse vendo o que quer ver” (Murch, 2004, p. 65), eu buscava constituir minhas imagens como uma superfície razoavelmente translúcida, sobre a qual as pessoas projetariam suas próprias histórias.

Era uma hipótese e uma questão de fé. Para que essa operação de projeção/substituição fosse possível, eu precisava me desarmar: não poderia mentir ou me mascarar para fazer um trabalho que “me representasse” e “agradasse” ao outro. Sabia que teria que enfrentar imagens não pacificadas. Também me preocupava pensar que essa operação poderia não se dar, e todo o trabalho poderia cair em um abismo de narcisismo disfarçado de subjetividade. Mas preferi acreditar na semelhança de experiências do ser humano, que as minhas repetições também seriam semelhantes as do outro. Afinal, como afirma Coccia, “aquilo que [nos] separa do animal taxonomicamente mais próximo não é um excesso de razão, senão a capacidade de [nos] reconhecer em uma imagem, de ser absorvido pelo sensível” (Coccia, 2010, p. 59). Por fim, coloquei meu punhado de fé nos bolsos, como um lastro, e segui adiante.
A proposta seria converter cada imagem em uma unidade, e cada unidade em uma pequena existência, até a centésima casa. O painel, no entanto, não poderia ser composto por uma única linha, ou não seria um gráfico. Precisava cruzar os dados, então decidi especificar que tipos de importâncias seriam classificadas (100 medos? 100 pessoas?), essa tipologia se subdividia em dez linhas, já que 10 também é um número natural para os seres humanos: temos dez dedos; de zero a dez, nos dizem os médicos, muita dor é dez; quanto vale isso para você, de zero a dez?

Como a proposta nunca foi preencher todas as casas, uma imagem teria que ocupar determinado valor numérico por sua força. Esse valor seria arbitrário e independeria das outras imagens. Mais que um espaço não preenchido, os vazios configurariam uma espécie de campo magnético no qual, em uma promessa futura, todos os cheios cairiam, formando novos vazios nas casas desocupadas. Os vazios também eram necessários porque nossa memória não é preenchida com lembranças, mas delimitada por nossos esquecimentos. Sobre o ato de percorrer o passado, Furio Jesi (2014), em Inatualidade de Dionísio, discorre a partir de uma frase de Nietzsche: “os nossos instintos percorrem todos caminhos do passado, nós próprios somos uma espécie de caos: — mas, por fim, como já dissemos, o ‘espírito’ sabe encontrar sua vantagem”. Dir-se-ia, em uma primeira e superficial leitura, que “percorrer todos os caminhos do passado” seja exatamente o contrário do ter “perdido o passado”. Mas, olhando-se mais a fundo, parece muito mais provável que o “percorrer todos os caminhos do passado”, por parte dos “nossos instintos”, significa ter esquecido o passado, uma vez que o que do passado é vivo é o presente.
Mas não sem dor se é destacado do passado para possuir apenas o presente, não sem dor se renasce – não sem morrer (Jesi, 2014, p. 65).
“O que do passado é vivo é o presente” quer dizer que do passado, só encontramos sentido naquilo que o atualiza. Mesmo que tenhamos em mãos, por exemplo, uma fotografia, seu significado e valor dependem da nossa relação hoje com aquele passado. Esquecemos infinitamente mais do que somos capazes de nos lembrar. O que guardamos de nós mesmos é uma seleta coleção de pequenos afetos e repetições desordenadas (os grandes afetos são irrecuperáveis, irrepetíveis) – seus significados só lampejam no agora.
Por isso sabia também que por mais que me esforçasse em dizer a verdade, ela só duraria um instante. No momento em que desse a obra por terminada, que todas as peças estivessem em seus devidos lugares, esse gráfico teria que ser inteiramente refeito, pois minhas importâncias já teriam se alterado, a menos que eu morresse exatamente ali. De uma certa forma, essa morte metafórica aconteceu, pois do processo de compilar todas aquelas grandes importâncias, o que resultou foi um grande esvaziamento, uma espécie de apaziguamento da memória. Era se como colocar tais imagens na parede me permitisse deslocá-las da minha memória, do meu corpo, e enfim, esquecê-las.

Mas isso não me preocupava, essa era aliás uma das melhores partes do trabalho: que seria mais verdadeiro no exato instante em que se tornasse uma grande invenção. Que seria passado (vivo!) no instante em que se fizesse presente, pois daí em diante minhas imagens seriam substituídas pelas de quem se dispusesse a refazer meu percurso.
Mas até aqui eu tinha apenas uma estrutura, uma hipótese. Como chegar a essas imagens? Quando inscrevi o projeto no edital, pensei que produziria novas imagens a partir do que considerasse “importante”, mas quando parava para imaginar o que seriam essas novas imagens eu invariavelmente era remetida a outras que já existiam, ao meu próprio arquivo. Porque a fotografia tem isso, do momento do clique dizer do que se julga importante; de ser sempre uma escolha do que eu decidi que seria aquilo e não aquele outro. Também, como já disse, não poderia mentir, representar, precisava buscar uma forma de apresentar essas lembranças, mesmo que fosse preciso começar “sem a primeira página” (Sloterdijk, 2006).
Passei um ano vasculhando meus próprios arquivos, minhas reminiscências, tal como relampejavam em seus instantes de perigo, como indicava Walter Benjamin (1987), em sua sexta tese sobre o conceito de história:
articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (Benjamin, 1987, p. 223).

Assim, segui buscando “despertar no passado as centelhas da esperança”. A maioria das imagens encontrava em negativos “esquecidos”, muitos dos quais eu nunca tinha feito ampliações. Era interessante rever imagens que eu mesma tinha feito e não me lembrava que existiam. Eram pequenas latências. O processo foi doloroso também, tive que reviver seguidamente coisas que preferia nunca mais tocar. Era um trabalho exaustivo, demorado, de esvaziamento.
Ao mesmo tempo, sobrevoava meus arquivos como quem busca algo sem saber o que está procurando, mas com a certeza de que quando encontrasse, saberia. Sobre esse processo de edição intuitivo em seus filmes, Murch (2004) comenta que a mente humana tem mais aptidão para reconhecer ideias do que para articulá-las. Quando você está num país estrangeiro é sempre mais fácil entender a língua do que falar. De certa forma todo filme é um “país estrangeiro” e a primeira coisa que se deve fazer é aprender a língua daquele “país”. Cada filme tem (ou deveria ter) um jeito único de comunicar, cabendo a nós o esforço para aprender sua língua. Mas o filme fala a língua própria dele melhor que você! Portanto, na procura mecânica do que eu queria, acabava encontrando o que precisava — algo diferente, melhor, mais arguto, mais espontâneo e mais verdadeiro do que a minha primeira concepção. Conseguia reconhecer quando achava, mas não poderia nunca ter articulado aquilo antecipadamente. Picasso costumava dizer: “eu não procuro, eu acho” – que é outra forma de expor a mesma ideia. Oscar Wilde se aplica aqui: “Quando Deus quer punir alguém, Ele dá o que a pessoa quer” (Murch, 2004, p. 114).

Seguindo essa metodologia do encontro fortuito em meus arquivos, comecei a identificar repetições nas fotografias, talvez por estar, na mesma época, justamente lendo Diferença e Repetição de Gilles Deleuze, onde ele afirma que “Não repito porque recalco. Recalco porque repito, esqueço porque repito. Recalco porque, antes de mais nada, não posso viver certas coisas ou certas experiências a não ser no modo da repetição” (Deleuze, 2000, p. 26). E que “toda cura é uma viagem ao fundo da repetição” (Deleuze, 2000, p. 27).
Decidi então voltar ao início de todas as repetições, a infância, onde eu cairia e recairia incontáveis vezes, num ritmo marcado por ciclos e movido por duas forças antônimas: o desejo e o medo. Defini então que primeira e última imagem do painel (Desejo no 001 e Medo no 100) apresentariam a mesma imagem: meu irmão, então com três anos de idade tentando carregar o oceano Atlântico em seu baldinho.

Na época a escolha dessa imagem não tinha esse sentido, mas penso que começar “a primeira página” com alguém que podia significá-la foi uma escolha que evidenciou a minha “impossibilidade de dizer eu” no início dessa autobiografia radical, como descreve o filósofo alemão Peter Sloterdijk (2006), em Venir al mundo, venir al lenguaje:
Quando o que estava em jogo eram seus próprios começos vitais, os autores imediatamente ultrapassaram o horizonte autoconsciente, voltando a um conhecimento já adquirido, a histórias que eles ouviram falar de seus parentes, a boletins retrospectivos e já transmitidos; alguns autores pintaram grandes afrescos culturais para definir o momento temporal de sua aparência terrestre, como se quisessem fazer surgir seu evento natal em uma objetividade histórica mundial e encobrir o horror vacui que irradia da representação de um mundo em que o sujeito que diz “eu” ainda não estava presente. Se alguma coisa prova tudo isso, é que o fio autobiográfico se rompe na própria vida assim que se tenta levar a bobina o suficiente para acessar os inícios, e isso não deve mencionar o contexto da história universal, que, como tal, naturalmente não presta atenção a qualquer indivíduo na forma de autoconhecimento, a menos que seja Deus em pessoa ou o espírito do mundo, dos quais, a propósito, não se sabe que têm abrigado ambições autobiográficas (Sloterdijk, 2006, p.43).
Nessa mesma lógica, a casa número 002 se afirma como o primeiro ponto ocupado, também repetido, na linha das verdades e na linha das ignorâncias. Essa ocupação marca o início das páginas onde a minha linguagem se imprime, onde que passo a ser o sujeito que diz “eu”, como mais adiante Sloterdijk (2006) acrescenta:
[…] a partir do momento em que o idioma domina, desde o momento em que as palavras nomeiam as coisas e, gradualmente, entraram em cena e reciprocamente eu e o mundo, a alma anteriormente dissolvida no mundo aprendem a se opor para uma massa de objetos. Quando a força determinante da linguagem entra em jogo, o plasma do mundo começa a se solidificar. A superfície infinita do existente é dividida em parcelas de significado que dividem o volume indefinido dos fenômenos em oposições (Sloterdijk, 2006, p. 51).
Relendo os nomes que tinha dado às minhas pastas de imagens, percebi que quase todas as palavras poderiam se relacionar com seus opostos, assim, das bordas ao centro, as linhas do painel foram se construindo: para minha festa, já tarde da noite, meu irmão e eu corríamos ao redor da mesa de doces recém enrolados e ainda “proibidos”. Como quem ouve um relâmpago, ouço gritos e toda uma agitação se inicia. Uma enchente de grandes proporções inunda nossa casa, que tivemos que abandonar de barco e da qual pouca coisa restou. Lembro-me do cachorro latindo sobre a casinha e da capa de gabardine da minha mãe sob a qual tentava proteger meu corpo. Essa talvez seja minha memória mais antiga e da qual tenho vestígios até hoje (como não conseguir morar em lugares térreos e ter mania de móveis suspensos).

Busquei explorar essa tensão entre queda e estabilidade nas linhas 5 e 6: o horizonte que nos traz à superfície e ao abismo, esse buraco no qual tropeçamos repetidas vezes. No ensaio A Invenção da Terra, Franco Farinelli (2013) descreve a linha do horizonte como sendo […] ao mesmo tempo o testemunho, o sinal, a prova dessa extraordinária metamorfose e dessa extraordinária estabilidade. Esta é uma linha, se pensarmos bem, que não se limita simplesmente a separar e, ao mesmo tempo, unir (diferenciando um do outro) o Céu e a Terra, como nos parece agora, mas que faz muito mais. E a primeira linha para nossa construção de mundo, o que quer dizer, para a construção do nosso mundo (Farinelli, 2013, p. 27).
Já o abismo trata de abrigar, segundo o mesmo autor, o invisível:
Os objetos verdadeiros, as verdadeiras montanhas, os verdadeiros lagos estão sob o manto, pertencem ao corpo escondido, ctônico, subterrâneo, obscuro, abissal da própria Terra. Mas estamos condenados, se quisermos tentar conhecer algo, a contentarmo-nos com o que vemos, e vendo a imagem do que existe acreditamos ver o que existe. De modo que a verdade permanece e permanecerá sempre escondida para nós e devemos nos contentar apenas com as aparências, com as ilusões (Farinelli, 2013, p. 47).
A figura do abismo também é trazida pelo cineasta espanhol Julio Medem, em seu filme Lucía y el sexo (2001), no qual o narrador-escritor, que é o personagem principal da narrativa, cria um buraco no meio do livro onde, ao cair, retorna para a primeira página e a história recomeça. Em meu processo, a figura do abismo representava essa queda – a perda de uma certeza – de onde a minha própria história recomeçava em uma nova superfície (o próximo horizonte, para mais adiante tornar a cair).
Coincidentemente, dia desses, enquanto lia para a escrita deste texto e cuidava para que meus filhos pequenos não morressem afogados na piscina do condomínio, uma menininha da vizinhança começou a gritar: “Preciso de uma superfície, preciso de uma superfície!” Ao que outra criança próxima lhe indagou: “Mas o que é uma superfície?” E ela, prontamente, respondeu: “Superfície é um lugar onde a gente tem segurança”.

A partir destas duas linhas-mestra centrais – horizonte x abismo – e das bordas externas delimitadas pelas linhas do medo x desejo, outras linhas intermediárias e também opostas nasciam:

Linhas 2 e 9: Infâncias e Mortes
Há comumente uma conotação positiva que acompanha a palavra infância, ao oposto da qual estaria uma preconcepção negativa da morte. Estranhamente, quando comecei a revirar minhas memórias de infância, deparei-me com uma sucessão de desaparecimentos, pequenas mortes, coisas que já não estão, lugares que já não são. Já a morte em si aparecia sempre como uma promessa adiada a cada abrir de olhos: hoje não. A cada morte presenciada, um atestado de que eu as havia sobrevivido.
Linhas 3 e 8: Verdades e Ignorâncias
Ao longo da vida colecionamos certezas daquilo que, em um dado momento, nos é perfeitamente coerente. A isso chamamos verdade. A ironia da verdade é que ela é instável, volátil. Como uma miragem, desaparece se tentamos nos aproximar, só pode ser vista à distância, e ainda assim, apenas se estivermos parados no ponto exato de onde ela é perceptível.
Como oposto da verdade está a ignorância, tudo aquilo que não sei. Atrás de toda ignorância está uma promessa de saber, um predestinado encontro com uma verdade oculta. Então há tantas verdades quantas ignorâncias. Juntas, são como vidros espelhados, por uma de suas faces enxergamos ao longe, enquanto a outra nos reflete. Não há como saber se estamos diante de uma ou da outra.
Para reforçar essa face dupla, duas imagens se repetem, na casa 2 de cada uma dessas linhas. Assim, verdade e ignorância se equivalem.
Linhas 4 e 7: Movimentos e Pausas
A linha que por fim se chamou “100 movimentos” chamava-se originalmente “100 pessoas”. Porém percebi que havia poucas pessoas que me importavam naquele momento. A maioria das pessoas havia sido importante. Eram como o resultado de um encontro de pássaros que se cruzam no céu para então se perderem novamente. Ao mesmo tempo uma busca, creio que há períodos na vida em que nos buscamos, alternados por outros momentos em que estamos confortáveis na solidão. Estes são os tempos de pausa.
A palavra movimento também dá forma às peculiaridades e pequenos gestos de cada um. Algumas pessoas se movem lentamente e sentam-se, felinas, ao nosso lado, enquanto outras nos atravessam como se fossemos feitos de ar. Há ainda os gestos familiares: como reconhecemos as pessoas pelo passo largo ou contido, pela maneira que se sentam na ponta da cadeira, como batem as mãos na mesa enquanto falam, ou como curvam as costas para trás com as mãos na cintura quando se levantam.
Desde o projeto eu tinha uma visão de que as imagens teriam o formato quadrado, com o intuito de criar uma unidade, mas também porque queria explorar inversamente o primeiro conceito de punctum de Barthes (1984), que afirmava residir no detalhe a força de algumas imagens. Com isso em mente, excluí propositalmente o ponto que julgava mais forte de cada imagem. Queria criar uma lacuna para que o receptor preenchesse com seus próprios vazios. Surpreendentemente essa tentativa de remover o que julgava ser o punctum (como se fosse algo tangível) de cada uma, não pacificou as imagens, pelo contrário, tornou-as ainda mais incômodas.
Depois de pré-selecionar uma série de imagens, o próximo passo foi começar a construir um protótipo do painel na parede do meu ateliê, que na época era também a sala da minha casa. A sensação remetia à tentativa de montar um quebra cabeça onde as peças não apenas não se encaixam, como também não formam nenhuma figura compreensível. Tentei utilizar o método que tinha proposto originalmente: arbitrar valores às fotos (que ia escrevendo no verso delas) e simplesmente dispô-las nas suas devidas linhas (pausa #42, por exemplo), mas a medida que o painel era preenchido percebi que a maioria dos números que eu havia atribuído jogava as imagens para os dois extremos da composição, preenchendo os menores e os maiores valores e deixando o meio quase que completamente vazio.
Outro problema foi que o sentido das imagens se alterava em função das que estavam ao seu redor, havia uma forte tendência narrativa nos pequenos blocos que se formavam. Ao mesmo tempo, as histórias iam se transformando em outras à medida que um bloco se afastava do outro, à deriva. Decidi explorar essa força. Mais uma vez pensei em Cortázar (2010, p. 34): “Caio e me levanto” e Deleuze (1988, p.47): “repito porque recalco.” Mas como unir esses fortes blocos que pareciam mais concêntricos e circulares numa estrutura linear? Minha solução foi construir pontes flutuantes com imagens que tinham a função de facilitar o deslocamento entre um pensamento e outro no painel. Essa forma de edição também pode ser associada ao pensamento brilhante de Walter Murch (2004), quando conclui que nosso ato de piscar os olhos é uma resposta física à conclusão de uma ideia, à transição entre um pensamento e o próximo.
Parece-me, portanto, que o nosso ritmo de piscar é tanto mais controlado pelo nosso estado emocional e pela natureza e frequência de nossos pensamentos do que pelo ambiente atmosférico em que nos encontramos. (…) o piscar é algo que auxilia uma separação interna de pensamentos ou é um reflexo involuntário que acompanha a separação mental que está acontecendo de qualquer forma. Não é apenas a quantidade de piscadas que é significativa, mas também o próprio instante em que elas acontecem. Comece uma conversa com alguém e repare quando a pessoa pisca. Você provavelmente vai perceber que o ouvinte irá piscar exatamente na hora em que “pescar” o que você está dizendo, nem um instante antes, nem depois. Por que seria isso? Bom, a fala é cheia de gracinhas e elaborações nas quais não reparamos – os equivalentes, na conversa, de “Prezado Senhor” e “Atenciosamente” – e a mensagem que temos para passar é frequentemente “espremida” entre uma introdução e uma conclusão. O piscar acontecerá quando o ouvinte perceber que a “introdução” acabou e que agora algo significativo será dito ou quando achar que estamos “desacelerando” e nada mais de significativo será dito por enquanto. Esse piscar acontecerá onde o corte aconteceria se a conversa fosse filmada. Nem um quadro antes, nem um depois (Murch, 2004, p. 66-67).

Então quis dar esse espaço para as pessoas “piscarem” entre uma imagem significativa e outra, para que as fotografias permanecessem fotografia e não cinema, como aponta Barthes (1984), quando compara a experiência de contemplar fotografias à experiência cinematográfica:
Será que no cinema acrescento à imagem? – Acho que não; não tenho tempo: diante da tela, não estou livre para fechar os olhos; senão, ao reabri-los, não reencontraria a mesma imagem: estou submetido a uma voracidade contínua; muitas outras qualidades, mas não pensatividade; donde o interesse, para mim, do fotograma (Barthes, 1984, p. 85).
Nesse exercício de construir pontes e costuras entre uma força e outra, pensava em como o número 100 na minha cabeça parecia muito menor do que agora que o percorria diariamente, unidade por unidade. Quase todos os dias adicionava e subtraía algumas imagens. A princípio, não havia qualquer obrigação de que as imagens justapostas conversassem diretamente entre si, como é comum nas exposições fotográficas, ou seja: que simulassem pertencer a uma mesma série. Ao contrário, elas se assemelhavam a um fluxo de pensamentos desconectados. Murch (2004) também descreve esse tipo de justaposição no cinema e na vida:
(…) acredito que as justaposições “fílmicas” acontecem não apenas quando sonhamos, mas também quando estamos acordados. E, de fato, chegaria ao ponto de dizer que essas justaposições não são artefatos mentais casuais, mas parte da metodologia que usamos para dar sentido ao mundo: temos que transformar a realidade em uma descontinuidade visual, do contrário ela iria nos parecer uma linha de letras sem separação por palavras ou pontuação quase que incompreensível. Portanto quando nos sentamos na sala escura do cinema vemos os filmes editados com (surpreendente) familiaridade. Nas palavras de Huston: “É a coisa mais parecida com o pensamento” (Murch, 2004, p. 68).
Essa “descontinuidade” mencionada por Murch, que no cinema é dada pelos cortes, na memória é delimitada pelo esquecimento. Fotografias expostas funcionam como gatilhos de algo que permanece intangível. Prova disso é que, quando as olhamos, somos levados a outras imagens que não aquela que está diante de nós, como quem levanta a capa de um álbum invisível. Essa reflexão me remete à série “Blinks”, de Vito Acconci (1969), onde, caminhando em linha reta por uma rua em Nova Iorque, apontada para longe de seu corpo e pronta para disparar ele tenta não piscar. Cada vez que pisca tira uma foto. Acconci costumava fazer muitas anotações antes e depois de suas ações. Dessa em particular, temos a contagem do número de passos entre uma foto e outra:
1. 18 steps. 2. 34 steps. 3. 20 steps. 4. 12 steps.
5. 8 steps.
6. 22 steps
7. 7 steps.
8. 14 steps. 9. 26 steps.
10. 10 steps. 11. 56 steps.
12. 18 steps (Acconci, 1969)
É interessante observar que a contagem de passos não parece seguir uma regra, ou seja, confirmando a teoria de Murch, não parece estar associada a uma necessidade fisiológica, mas talvez esteja conectada ao fluxo de pensamentos de Acconci. Outro fato intrigante é que as imagens que Acconci nos dá a ver são justamente os pontos cegos de toda a experiência: o momento que ele mesmo não presenciou, uma fotografia impressa do próprio esquecimento e da transição entre um pensamento e outro.
Coccia (2010) aponta para o ato de fechar os olhos como um distanciamento da experiência propriamente dita, uma forma de transição entre o universo psíquico e o objeto que está diante de nós. Assim como sugere Flusser (2002), aqui a experiência sensível seria circular, um ir e vir entre esses dois universos: O sensível, o ser das imagens, não é algo meramente psíquico: caso fosse, bastaria fechar os olhos para ver e observar qualquer coisa. Não precisaríamos do mundo para poder ouvir nem deveríamos lançar-nos pele a pele nos objetos para poder perceber suas superfícies ou para sentir seus gostos. Não é a luz que existe no fundo do nosso olho, não é o esplendor que percebemos toda vez que adormecemos, o que ilumina o mundo. Esse esplendor tem uma natureza outra e provém de fora de nós. A existência do sensível não coincide perfeitamente nem mesmo com a existência do mundo e das coisas. (…) Elas precisam devir perceptíveis. Se o sensível não coincide com o real, é também porque o real e o mundo, enquanto tal, não são por si mesmos sensíveis, eles precisam devir sensíveis (Coccia, 2010, p. 17).

Voltando às minhas imagens, como as havia disposto na parede da sala de estar, gostava quando pessoas vinham me visitar, porque era uma chance de testar suas reações. Normalmente respondiam justamente com este movimento de vai e vem: primeiro se afastavam, tentando ver a coisa toda, depois se aproximavam para ver as imagens de perto, piscavam, olhavam novamente. Esse duplo movimento se repetiu de forma ainda mais intensa na exposição, como descreverei mais adiante.
Tendo a sequência quase pronta, precisava decidir a forma das molduras. Desde o início queria algo que ressaltasse os espaços vazios. Decidi então criar relevos nas fotografias com uma camada espessa de acrílico (10mm), que também é um material mais quente e mole que o vidro, o que tornou as peças confortáveis ao tato. A espessura agregava profundidade e distorcia as bordas, separando uma imagem da outra, ainda que estivessem justapostas. Quando Ana Gonzalez, então coordenadora do museu, as viu, disse: “As pessoas vão querer roubá-las. Isso é um objeto de desejo.”
Praticamente todas as minhas questões formais estavam resolvidas, à exceção do que fazer com os números e enunciados das linhas. Pensava o texto como uma proposição (pois de fato o era), uma espécie de partitura a ser interpretada de infinitas maneiras. O resultado que havia obtido com minhas imagens era apenas uma de suas possibilidades. Queria oferecer ao receptor algo que o provocasse a pensar no que faria com a mesma proposta. A palavra “partitura” me remeteu a pedestal, como os utilizados por músicos em orquestras. O resultado ficou parecido com isso: utilizei sete pedestais e dividi o texto em blocos de papel com folhas destacáveis. Cada bloco continha duas linhas opostas (infâncias e mortes, por exemplo), de certa forma refazendo o percurso que eu fiz para criá-las. O último bloco era feito de folhas em branco, como as pilhas de papéis de Felix Gonzalez-Torres, na obra Nowhere Better Than This Place, Somewhere Better Than This Place (1990).
Comecei a montagem da instalação por demarcar uma linha na parede, com uma caneta vermelha bem grossa: a linha do horizonte. Inspirada em Gabriel Orozco, a posição da linha foi medida com meu próprio corpo. Queria que a parte mais alta estivesse na altura dos meus olhos erguidos e a borda inferior alcançasse aproximadamente a altura do meu umbigo. A linha vermelha marcava onde começava e terminava o gráfico e o meio entre as linhas de Gabriel Orozco com frequência toma a medida e as proporções do seu próprio corpo como referência para suas obras, como em Piedra que cede (1992): uma bola de plastilina com o peso do seu corpo e elevador salvo de um prédio demolido cortado em três pedaços, sendo o seu espaço central descartado e remontado tendo como medida a sua própria altura. Elegi o vermelho por saber que era uma cor carregada de muitos significados, cada um poderia atribui-lhe então o que fosse mais forte para si.
Mesmo para mim, que estava bem acostumada a ver aquelas fotografias, o painel era uma surpresa. Eu nunca tinha visto todas as imagens juntas naquelas dimensões. As peças em acrílico também funcionaram além das minhas expectativas, pois com o arranjo da luz e a certa distância, refletiam os receptores. Assim, a obra se desdobrava em três tempos: vista da porta, era uma grande mancha pixelada. Era possível saber que era feita de várias pequenas imagens, mas não havia qualquer definição ou suspeita do que cada uma se tratava. O painel demandava uma aproximação. Ao chegar mais perto, a cerca de 1m do painel, o receptor se deparava com nuvens de imagens, ponto em que também perdia a visão do todo. A obra pedia então que ele tomasse uma decisão: dar mais um passo e mergulhar em cada uma delas, ou dar as costas e abandoná-las. A decisão de dar mais um passo e “se perder” temporariamente de si, se assemelha à experiência de cinema, como descreve Murch (2004):
Num filme para o cinema, em especial aquele que envolve totalmente os receptores, a tela não é uma superfície; é uma janela mágica, um tipo de espelho através do qual o corpo todo passa e toma parte na ação com os personagens. (…) A televisão é uma mídia “para se olhar”, enquanto o cinema é uma mídia “para se entrar”. Podemos pensar na tela da televisão como uma superfície em que o olho bate e volta (Murch, 2004, p. 129).
Assim, seria possível afirmar que as dimensões do painel e a justaposição das imagens o tornavam uma mídia “para se entrar”, ao passo que se as imagens estivessem dispostas isoladamente, se configurariam como algo “para se olhar”.
Sabia que era uma obra que exigia muito tempo (e coragem) do receptor, não só pelo número gigantesco de imagens, mas também porque os provocava a remoer suas próprias memórias. Também imaginava que, quando saíssem da exposição, as pessoas já teriam se esquecido da maioria das fotografias que viram, mas o mais interessante era ouvi-las relatar de quais se lembravam. Não me recordo de duas pessoas terem me falado da mesma imagem. Cada pessoa havia se apropriado de uma parte diferente do painel. Essa fotografia eleita então se tornava base para que me contassem uma história, que quase sempre começava com a frase: “aquela imagem do… me fez lembrar de…” Ou seja, eu não apenas ativava suas memórias, trazia à tona seus esquecimentos.
Todas as pessoas que observei pegaram os textos dos blocos de papel, algumas antes de ver as fotografias, outras depois. Em geral não lhe davam muita atenção naquele momento, mas eu queria mesmo adiar essa leitura, queria que aqueles papéis fossem carregados para serem lidos em outro lugar e assim estivessem desconectados das fotografias. Imaginava esses papéis sendo dobrados e esquecidos em algum bolso por vários dias, até que alguém os encontrasse novamente e se dispusesse a lê-los, e então a história recomeçaria.
Uma das perguntas que uma das curadoras, Marília Panitz, me fez na nossa primeira reunião permaneceu sem resposta até a montagem do painel: “Mas o que acontece depois do número 100? E o 101, o 102, não existem?” Na época respondi que o número 100 representava o espectro do visível, a projeção de um imaginável. Assim como acreditamos que enxergamos todas as cores, mas não podemos ver nem o ultravioleta ou o infravermelho, essas extra partes do visível estão fora do nosso espectro humano, então temos que optar: ou acreditamos que existem (fé), ou pressupomos que não existem e fim.
Mesmo com a minha resposta elaborada, continuei com a pergunta insistindo na minha cabeça: mas e o antes, e o depois? O antes é um dado a que tenho um acesso relativamente palpável, pelas histórias que me foram contadas dos meus antepassados. Esse acesso, no entanto, pode ser uma armadilha, tanto no que me precede, como indivíduo, como no que habita meu sujeito ainda inconsciente, pré-linguístico. Sloterdijk (2006) descreveu essa impossibilidade nos seguintes termos:
Por trás da consciência protetora de não ser capaz de fazê-lo, o medo e o pânico de talvez ser capaz de fazê-lo é agitado. Bem, se eu pudesse voltar para o meu verdadeiro começo, o que aconteceria? A falta de limites da inicial não seria revelada de uma só vez? O ápice hipersensível da noite da criança abriria novamente; o livro infinito do mundo seria disperso em pedaços evocando os horrores da falta de objetividade. Mas, acima de tudo, isso aconteceria: as agulhas da realidade mais uma vez me atravessariam para me inscrever com a tinta terrível da identidade, e novamente o ferro ardente se aproximaria da minha pele para marcar as propriedades reconhecíveis e gravar os sinais da separação à prova de falsificação entre os meus ombros (Stolterdijk, 2006, p. 52).
Se é fato que existe um mundo todo que me antecede, ainda assim eu não posso descrevê-lo. Para simbolizar essa impossibilidade, eu precisava de algo que não tivesse sido feito por mim ou para mim. Comprei um novelo de linha azul (para contrastar com o vermelho, e por ser uma cor primária) e uma agulha grossa que prendi na parede, na altura da linha das 100 infâncias, mas distante vários metros do início das imagens. O novelo também agregava o valor de uma medida indeterminada, um passado emaranhado que carrego e que se estende muitos metros para trás de mim. Passei a linha pelo buraco da agulha e a estendi até a casa de número 30 no painel, onde ela termina abruptamente. A trigésima casa era para mim o ponto em que minha primeira filha, na época em meu ventre, entraria na história. A partir dela, eu também passaria a fazer parte daquele novelo indecifrável do invisível que a antecede e que ela também vai carregar consigo. O novelo também é uma alusão à obra “À bruit secret” de Marcel Duchamp (1916). Sabemos (acreditamos) que ali há um barulho, mas não poderemos jamais saber qual é. E o depois? Não tenho dados (nem fé suficiente) para projetar o que virá depois da minha morte. Sei que o mundo continuará, independente de mim e talvez, por um tempo, alguém se lembre do que fiz por aqui. Para representar essa pequena sobrevida, ainda que às escuras, desenhei uma pequena linha preta, que se estendia por 10 cm além da linha do horizonte, mas na altura da linha dos 100 desejos.
Tanto essas três linhas coloridas quanto as próprias imagens trazem pontos cegos para o receptor da obra. Ele não pode decifrá-las. Não queria que as pessoas “entendessem” a obra, ou forçá-las a participar de minhas próprias experiências. Essa noção de ponto cego foi reforçada por uma das fotos, que eu havia encoberto com uma camada grossa de tinta preta. Era uma imagem que eu queria que fizesse parte do painel desde o início da edição, mas que por várias vezes tinha pensado em arrancar da composição. Era uma presença importante, mas muito incômoda. Por motivos só concernentes a mim, eu tinha mais medo dessa foto do que de todas as outras. Cobri-la de tinta foi uma solução apaziguadora (um atentado contra a sua mirada), mas também um gesto que denotava o que seria o inverso daquele painel: eu poderia não tê-lo feito, poderia ocultar todas aquelas imagens, poderia, como um “fama” ter “embrulhado minhas memórias num lençol preto”. Mas eu tinha escolhido “deixá-las soltas pela casa”. Às outras, restava apenas dizer: “cuidado com os degraus”.
Mas acho que obtive a melhor explicação sobre essa escolha de apresentar publicamente imagens tão íntimas numa tarde em que fui a um podólogo, pouco depois da abertura da exposição. Aquela situação desconfortável quando perguntam “o que você faz” só para passar o tempo, mas já que eu e ele estaríamos obrigados a dividir o minúsculo cubículo por pelo menos uma hora, respondi evasivamente, enquanto procurava alguma resposta padrão para o diálogo que previa subsequente:
– Sou fotógrafa.
– É mesmo, do que?
– Depende…
– É artístico?
– É…
– Mas que tipo de obra? é instalação? – (instalação?!) (…)
Diante da genuína disposição do rapaz em lixar meus pés e ouvir sobre o que afinal de tão artístico eu fazia, expliquei-lhe essa obra com as palavras mais simples que encontrei. Contei que era um grande painel, com muitas pequenas fotos de meu arquivo pessoal, coisas de família, amigos, retratos, paisagens de infância, bichos de estimação, “enfim, todo tipo de coisa”. Expliquei-lhe também que meu propósito era fazer com que as pessoas que vissem aquelas imagens pensassem sobre si mesmas, mas que tinha um medo enorme que a obra falhasse. Neste ponto, ele me interrompeu subitamente:
– Mas que engraçado, o medo que a maioria das pessoas teria, que é o de se expor dessa forma, nem passou pela cabeça da senhora…

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