Com isso, essas artistas tratavam a própria imagem como uma relação social e o espectador como um tema construído pelo mesmo objeto do qual anteriormente afirmavam distância. O descolamento visual e seu corolário, o objeto de arte autônomo, surgiram como uma relação de externalidade mais do que dada, construída, uma relação que produz – e não é produzida por – seus termos: objetos discretos, por um lado, e sujeitos completos, por outro (Rosalyn Deutsche, 2018, p.137).
Alfaiataria para Corpos Latentes é uma peça em três atos que parte de mim. De minha história como mulher e mãe. Da minha experiência de morte subjetiva através da gravidez, parto, puerpério e amamentação. Mas a pergunta se mantém: como multiplicar essa experiência em direção ao Outro? A resposta só pode estar na pergunta: a partir do outro. Então me ponho a coletar roupas usadas por mulheres nesses períodos, e peço que me contem suas histórias. Em seguida me fotografo vestindo essas peças que são posteriormente costuradas umas às outras. Assim se formaram três esculturas: “gravidez”, “pós-parto” e “amamentação”, e também um painel com as minhas fotos vestindo cada uma delas antes de serem costuradas, como um “look book”, em tamanho 15x21cm, presas sem moldura com alfinetes à parede, remetendo à um ambiente de atelier de costura.
A pergunta “como você sentia o seu corpo nesses períodos?” foi respondida por várias mulheres e transformada em um único áudio, gravado com a minha voz. Assim como eu precisava vestir o meu corpo com aquelas roupas, queria ter minha garganta atravessada pelas suas memórias. Essas mulheres são as verdadeiras imagens que dão contorno a esses corpos estranhos a nós mesmas. Esse é o tecido que constitui a obra onde o meu corpo é o fio condutor que alinhava todos os corpos em um. Porque, para citar novamente Emanuelle Coccia (2010), “O Mundo é minha Pele”, e nesta proposta estou justamente buscando essa constituição de mundo-pele-devir-sensível a partir da experiência análoga de outras mulheres.
A escolha de trabalhar com itens de vestuário se dá por serem, muitas vezes, peças que já nos foram doadas por outras mulheres que as usaram neste período, e também por serem roupas que dificilmente usaríamos em outras épocas. Trata-se de uma indumentária bastante específica e carregada de “funções”, como levantar isso ou esconder aquilo, ter aberturas para aquele outro ou permitir determinados movimentos. Em suma: a roupa da gravidez, puerpério e amamentação é definida em função da identidade de mãe, das funções maternais, e não da mulher enquanto sujeito que escolhe seus próprios ornamentos. Para Coccia (2010), uma roupa é,
[…] antes de tudo, um corpo. Em qualquer roupa fazemos experiência de um corpo que não coincide com nosso corpo anatômico. Vestir-se significa, assim, completar nosso corpo, acrescentar-lhe uma consistência ulterior feita dos objetos e materiais mais disparatados possíveis cujo único objetivo é o de nos fazer aparecer. (…) A roupa é um corpo transformado em nossa própria pele, é a faculdade de transformar o impróprio absoluto no absolutamente próprio; e, vice-versa, de transferir (alienar) o próprio (enquanto o que há de mais íntimo) naquilo que lhe é absolutamente estranho. A nudez é, de fato, a outra face dessa mesma faculdade em função da qual somos capazes de alienar nossa própria pele como um objeto exterior, e de fazer um objeto mundano qualquer e alheio se tornar a nossa pele. Estar nu significa ser capaz de alienar o próprio no impróprio e de assumir o impróprio como próprio. Graças à nudez estamos condenados a trocar de pele, veste ou roupa [abito], a viver de costumes e não de natureza: nenhuma veste poderá transformar-se em natureza na medida em que não poderemos nos apropriar completamente de nenhuma roupa [abito]. Roupa [abito] e nudez não conhecem nenhuma relação de oposição: vestir-se é tão somente a capacidade de estar nu fora de si, através de um corpo interposto. Ou ainda, a nudez não passa da faculdade de alienar de si aquilo que constituía nossa pele, de nos reconhecermos aquém de nossa aparência. Nenhuma das duas exprime melhor do que a outra a natureza humana: apenas um embrião está perenemente vestido e apenas um cadáver está irremediavelmente nu (Coccia, 2010, p. 83-85).
No final de A Vida Sensível, Coccia (2010) afirma que
[…] nossa natureza não tem outro conteúdo (nem outro lugar) que não seja nossa própria aparência, nossa specie. Não é por acaso que o termo técnico para designar a identidade biológica de todo indivíduo não nomeie senão a sua aparência sensível, precisamente, a sua species. Na definição de nossa aparência, sempre está em jogo a nossa natureza, e, vice-versa, cada vez que modificamos nossa natureza, também modificamos nossa aparência, nossa própria espécie [specie]. Literalmente mudamos de pele. Tudo aquilo que a biologia enumera como forma ou natureza deve ser entendido como expressão dessa faculdade. Ou seja, o animal é aquele ente cuja natureza está inteiramente em jogo na sua aparência (Coccia, 2010, p. 76)
Ora, se nossa aparência determina nossa identidade, de que forma essa mesma identidade é subtraída dos corpos das mulheres durante a gravidez, puerpério e amamentação? De fato, mais do que subtraída, ou mesmo suspensa, essa identidade é de fato, em grande parte, extinta. Gestar, mas sobretudo parir é uma forma de morrer em vida — e de renascer dessa morte. Ainda que conjugar morte e maternidade possa parecer contraditório, ao me colocar em diálogo com a experiência de outras mulheres, o luto pós-parto se torna evidente. Nascem os filhos, morre uma era: morrem prioridades, morre um certo tipo de liberdade, morre uma rotina, morrem planos, morre o direito a nos considerarmos o centro absoluto de todas as escolhas e decisões: morres-se. De muitas formas, muitas vezes brutais – haja vista as estatísticas de violência obstétrica e depressão pós-parto – nunca mais voltamos a ser, no sentido singular. Seja no sentido da alma, que precisa se reconhecer em sua nova forma, ou do corpo, que passa a acumular as marcas do nascimento de cada filho como uma coleção de tatuagens compulsórias.
Passado o parto e o “resguardo”, outra grande parte de nossa identidade é suspensa durante esse período de clausura doméstica. Quase nada se fala sobre uma sexualidade que leva muito mais do que quarenta dias para se reestruturar, ou mesmo anos, um contexto em que casos de estupro marital são tratados com naturalidade, como algo que “faz parte” do casamento. Inúmeros são os casos de depressão diagnosticados, mas infinitamente mais frequentes são os relatos anônimos de solidão. Para onde vai nossa subjetividade quando não participamos mais da sociedade, seria possível retomá-la?
Assim como todos os processos anteriormente descritos, o que proponho a exibir é uma coleção incompleta, uma pequena mostra de uma pesquisa aberta que poderia se estender infinitamente. Essa costura poderia ser inteiramente desfeita e tornar a se refazer, como Amaranta tecia sua interminável mortalha que era cosida durante o dia e descosida durante a noite para matar o tempo e tentar vencer a morte.

A morte não lhe disse quando ela ia morrer […], mas sim lhe ordenou que começasse a tecer a sua própria mortalha no próximo seis de abril. […] Amaranta encomendou as meadas de linho e ela mesma teceu a fazenda. Fê-lo com tanto cuidado que somente este trabalho levou quatro anos. Em seguida, iniciou o bordado. Mas na época […] o seu único objetivo foi terminar a mortalha (Márquez, 1996, p. 154).
De certa forma, essa roupa também é uma mortalha para acomodar esses corpos temporários. Uma vestimenta que traduz coletivamente esse estado latente de uma vida adiada: voltaremos a existir? O processo colaborativo também define contornos mais fortes, aponta repetições, evidencia texturas e padrões para cada um desses três corpos-imagem. Para Coccia (2010) a roupa é uma forma de transformar o corpo. Neste caso o corpo, transformado, precisa ter seus contornos definidos por essas novas roupas:
Se a roupa [abito] nos transforma em imagem, isso significa que ela transforma a nossa própria forma em algo de infinitamente apropriável e alienável. Uma roupa [abito] faz de nossa identidade, de nossa natureza, uma figura [specie], uma imagem, ou seja, algo que tanto não faz parte de nós quanto não poderá fazer parte de qualquer outro (Coccia, 2010, p. 90).

Durante a exposição, a roupa maior das três, a da gravidez, funciona como uma grande tenda sob a qual os visitantes podem entrar e a qual apelidaram de “útero”. Dentro do útero ouvem barulhos que são emitidos por uma caixa de som escondida na parte superior do vestido: a minha voz que os chama para o seu interior em um áudio de 15 minutos ininterruptos e em loop, narrando trechos descritos pelas outras mulheres. Nenhuma daquelas histórias é minha, de fato, mas o receptor demora alguns minutos para perceber que se tratam de falas distintas, a partir de algumas pistas. Por exemplo, em um dado momento, eu digo que tive dois filhos e em outro digo que aquela era a minha primeira e única gestação. A escolha de exibir parte dessas imagens em formato de áudio também é uma tentativa de inscrevê-las no corpo do receptor, que é de certa forma obrigado a vesti-las com seu corpo histórico, as ressignificando. Para Coccia (2010), a fala também é uma forma de existir fora de nós:
Do mesmo modo que a roupa exprime a faculdade de transformar em próprio corpo – em pele – um objeto mundano estranho, a linguagem é a faculdade de fazer de nossa aparência (nesse caso, de nossa aparência sonora, de nossa pele fônica) uma parcela de mundo. Falar significa fazer com que nossa pele exista fora de nós, alienar nossa pele. A linguagem não é senão uma pele móvel. (…) O homem é o animal capaz de transformar todas as coisas em sua pelagem: ou melhor, em sua pele. E, vice-versa, de transformar sua pele em objeto mundano: a linguagem. Nesse sentido, o homem não faz a experiência do aberto, ele está aberto. Entre ele e sua pele, há o mundo. Qualquer coisa pode tornar-se sua pele, e sua pele, o órgão de sua aparência, pode tornar-se coisa. (Coccia, 2010, p. 87).
A proposta de exibir essa escultura como um objeto permeável e, de certa maneira, “vestível” pelo público se dá por dois motivos: o primeiro é que para que permaneça sendo roupas, ou passaria a ser qualquer outro objeto. O outro sentido se dá pela ativação de outros sentidos: os tecidos têm cheiros e texturas diferentes, através deles passa determinada quantidade de luz, assim como a temperatura interna é diferente da externa. O “útero” só é gestante quando dentro dela há outro corpo, então quando o receptor se coloca sob essa pele, ele se torna também parte desse corpo, ainda que temporariamente. Coccia (2010) exprime essa dualidade da vestimenta que oscila entre corpo e objeto da seguinte forma:
A roupa é um corpo que vive apenas como imagem e que transforma nosso próprio corpo anatômico em um meio. Corpo anatômico e roupa são assim dois pólos de uma mesma realidade, precisamente o indivíduo, que jamais poderá ser definido por apenas um desses dois elementos. O primeiro é feito de carne, enquanto o segundo, pelo contrário, serve só para transformar o sujeito em imagem. Um é algo que nasce e morre, enquanto o outro tem uma temporalidade completamente indiferente ao nascimento e à morte (Coccia, 2010, p. 89).

A instalação buscou tornar visíveis sensações vividas silenciosamente em clausura doméstica, quando uma grande parte da identidade dessas mulheres esteve suspensa. Além das peças, foram incorporadas à instalação duas performances, no período em que a exposição esteve aberta no Museu Municipal de Arte de Curitiba, de artistas também mães, que tratam do tema da latência do corpo materno. Da mesma forma, outras artistas poderão integrar esse “corpo” expositivo posteriormente, uma vez que se trata de uma construção coletiva, onde cada troca entre autor, artista, receptor, cria uma lacuna a ser preenchida pelo próximo que o atravessar.
Uma das “provas” de que a partilha com o receptor foi bem-sucedida são as conversas que chegam até nós após as visitas à exposição, sobretudo quando partem de pessoas que não são ligadas ao meio artístico. Muitas mulheres se manifestavam e com frequência vinham diretamente falar conosco, fosse em um breve agradecimento, ou para dizer que se identificavam profundamente com o que estava exposto.

No entanto, uma das perguntas mais incômodas, feita a mim pela assessoria de imprensa, foi acerca de como receptores masculinos se relacionariam com as obras propostas na instalação. Como ela me foi feita antes da abertura, respondi que não sabia, mas que perguntaria a eles. Um dos primeiros feedbacks que recebemos foi um áudio de um homem enviado por WhatsApp a uma das artistas. No total, quatro homens enviaram áudios.
Ao contrário dos comentários feitos pelas mulheres, essas respostas dos homens nos surpreenderam por apresentarem outras formas de se relacionar com as obras, uma vez que não poderiam facilmente se colocar no lugar daqueles corpos. Assim, acrescento a cada imagem alguns dos comentários que recebi desses que se dispuseram a responder à questão.

E aí, de repente você senta embaixo daquilo que objetivamente seria um monte de panos e de retalhos e você ouve uma narrativa, ainda não sei bem como explicar, sobre as mudanças do corpo, sobre a morte de uma mulher, o nascimento de uma mãe e que estranho porque essa gravação não para. Ela fica ali reverberando, reverberando e ela não para e quando ela termina e ela começa de novo, como se fosse uma espécie de pensamento que não vai embora. Você quer que ele vá embora, mas ele não vai embora. E aí você vê uma das artistas em uma série de registros dela na mesma posição, apenas mudando as suas respectivas roupas e como ela parece diferente e apática nessas roupas, como se ela não coubesse naquelas roupas. Algumas, de tão apertadas, parecem grudar nela, mas parece que de alguma forma ela não cabe naquilo. E é estranho porque a gente tem uma noção de que a gente não cabe nas coisas porque tá muito apertado. Não, apertado ou folgado acho que são duas formas, duas faces de uma mesma moeda sobre o não cabimento (João, 29 anos, advogado).
Não sei se isso foi pensado pelas artistas, pode ter sido, mas eu vi uma coisa assim de que tipo a mulher não cabe. Parecia que tinha um monte de coisa que estavam sendo, que se faz tentar caber, como aquelas divisórias de tudo aquilo que cabia, mas na verdade não cabia naqueles lugares e tudo era muito transbordante (Cezar, 35 anos, publicitário).

Em Alfaiataria para Corpo Latentes, além de coautor, o receptor tem a possibilidade de habitar a obra. Essa cocriação é atravessada e ampliada também pela fala de outras mulheres e artistas, que a multiplicam e transformam.